Para eles, o dono é líder do bando, todo dia é de
caça e cada sala é uma selva. Enxergue o mundo com olhos felinos: em azul e
amarelo. E sempre alerta.
Os homens pensaram que haviam domesticado os gatos. Como eles mantinham os ratos longe, nós lhes demos
rações, e depois lares, nomes, camas, banhos, tosas, brinquedos, arranhadores, colos, cafunés, capas siliconadas para unhas. Estima-se que hoje existam 600
milhões de gatos vivendo com humanos, contra 800 milhões de cachorros, mas a
distância do campeão para o vice vem diminuindo. Desde 1985, os felinos são os
animais mais numerosos dos EUA, e o Brasil segue o mesmo rumo. Na internet,
então, eles são os reis, seja ilustrando frases bizarras ou protagonizando
vídeos fofos.
Diante de
tanto investimento financeiro e emocional, muitos veem em seus bichanos
características humanas. Pois se enganam. Diferente dos cachorros, que querem
ser gente, os gatos não querem ser outra coisa, e acham que a gente é que é
gato: aos olhos felinos, seus donos são gigantes amáveis da mesma espécie,
responsáveis por sustentá-los e protegê-los.
Protegê-los
do quê? Para o gato, cada sala é uma selva que ele só é capaz de enxergar em
dois tons: amarelo e azul. Por trás de cada cortina e por baixo de cada
almofada pode haver uma ameaça. Nascem, morrem e geram predadores. "Ele
descende de um felino territorial e solitário que aceitou a coexistência com
outros gatos e ainda está se adaptando à vida de animal de estimação", diz
John Bradshaw, autor de Catsense - The Feline Enigma Revealed ("Sentido de
gato, o enigma felino revelado"), best-seller de 2013 sem edição brasileira. Ou seja,
o que ratos sabiam e pufes suspeitavam, a ciência agora confirma: o gato
doméstico ainda é selvagem. Essa é uma descoberta fundamental para começar a
decifrar o seu comportamento, sua personalidade e sua complexa relação com o
homem, um relacionamento que começou por interesse.
DOMÉSTICO
NAQUELAS
O gato foi o primeiro vigia de estoque. Foi
assim: há 10 mil anos, as primeiras colheitas atraíram ratos pela primeira vez.
Para sorte dos primeiros agricultores, no rastro dos roedores veio seu
predador, o Felis silvestris. O gato selvagem era um bicho meio arisco, mas
mantinha os ratos longe dos celeiros, e o contrato foi fechado. Aos poucos a
relação deixou de ser somente profissional: em 9500 a.C. um homem e seu gato
foram enterrados juntos no Chipre. E, após milênios de bem-bom, criamos uma
subespécie, Felis silvestris catus, o chamado gato doméstico, que não é tão
doméstico assim. O autor de Catsense explica: "Para ser eficaz contra os
ratos, os gatos precisaram manter muitos de seus instintos selvagens."
Caçar ainda é parte fundamental da vida de
qualquer gato, mesmo os de apartamento. Quando filhotes, as brincadeiras, além
de engraçadinhas, estão ligadas ao desenvolvimento de habilidades de caça, como
velocidade e precisão do golpe. Seus cinco sentidos evoluíram para torná-los uma peluda maquininha de matar tão eficiente que
alguns até acusam os felinos pelo desaparecimento de pássaros e roedores.
(Calma, gatófilos: a maioria dos ambientalistas diz que mudanças no clima estão
por trás dessas extinções.)
O encontro com outros gatos e o acesso à rua
contribuem para que os gatos continuem meio ferozes. Mas o fator mais
importante para a manutenção da selvageria é justamente uma prática para deixar
gatos mais calmos: a castração. Quando castramos os gatos domésticos antes que
eles se reproduzam estamos tirando do jogo justamente os exemplares mais
dóceis e amigáveis. Resultado: 85% dos acasalamentos são organizados pelos
próprios felinos, entre gatas domésticas e gatos selvagens. Nossa seleção
artificial parcial perpetua as características mais agressivas da espécie. No
mínimo, perpetua fotos compartilhadas por amigos com a mensagem "gatinhos
lindos precisando de um lar".
MANHAS E MIADOS
Qualquer um acostumado a observar gatos
diariamente sabe: eles são metódicos. Tomam banho da mesma maneira, escolhem o
mesmo lugar para dormir e desenvolvem hábitos repetitivos. Um dos meus gatos,
Olavo, um persa de 4 anos, só participa de brincadeiras de briga depois de
correr por toda a casa, se refugiar no sofá e então ir até o canto oposto, onde
é atacado. Julieta, uma vira-lata peluda de 9 anos, só sobe no colo pelo lado
esquerdo. Mesmo que o lado direito esteja livre, ela saltará para a minha
esquerda e então se acomodará. Santino, um dos gatos mais marcantes que tive,
era um poço de manias. Não podia ver um copo ou balde com água que o
derrubava, e transformava pias em camas. Nenhuma surpresa de acordo com
pesquisas recentes: gatos têm personalidades definidas.
Um estudo de 2008 da Universidade de Central
Missouri, realizado com 196 donos de gatos, apontou quatro grandes perfis:
sociáveis, afetuosos, mal-humorados e tímidos. O gênero não se associa a nenhum
componente: machos e fêmeas podem entrar em qualquer categoria. A idade sim:
gatos idosos são mais introvertidos e menos curiosos. Mas também pode ser porque gatos e humanos
influenciem uns aos outros. Contra o estereótipo que mostra os felinos
desinteressados por seus donos, um grupo de veterinários mexicanos mostrou, em
2007, que o apego entre humanos e seus bichanos é parecido com o que se vê com
crianças pequenas. Na companhia de um estranho, miam menos e passam mais tempo
em alerta, próximos da porta e prontos para uma fuga. E ficam mais relaxados,
passeadores e brincalhões com seus donos.
Gatos aprendem até a sincronizar seus hábitos
com os dos humanos. Um estudo da Universidade de Messina, na Itália, mostrou
que, com o tempo, os padrões de alimentação, atividade e sono ficam parecidos
com os dos donos. Até mesmo a hora de ir ao banheiro se tornou a mesma para os
dois. Já os gatos criados livres mantêm os hábitos noturnos. "Há gatos
extremamente apegados aos seus donos, que passam o tempo todo ao seu lado, como
uma sombra felina", diz Daniela Ramos, especialista em comportamento
animal da USP. "Depois de um período de convivência intensa, a ausência do
dono pode trazer sintomas de ansiedade." Isso, claro, sem nunca atender quando é chamado.
O curioso é que uma pesquisa da Universidade de Tóquio constatou que eles
reconhecem a voz do dono, mesmo quando está misturada à de outras pessoas, mas
poucos obedecem. "Gatos, diferentemente de cães, não foram domesticados
para obedecer ordens", explica Atsuko Saito, um dos autores do estudo.
"Eles preferem ter a iniciativa no relacionamento com humanos." O que
eles ganham com isso? Não sabemos. Mas, se a relação com o homem ainda é
nebulosa, entre eles é que a coisa complica. Em grupo, todos os gatos são
pardos.
SEM MANDA-CHUVA
Nenhum estudo
se aprofundou ainda na dinâmica social entre gatos domésticos. Ainda que os
donos falem em líder do grupo ou macho alfa, entre os felinos não há hierarquia
rígida. Não há papéis definidos. Gatos dominantes em um contexto são submissos
em outros. Enquanto um gato tem privilégios sobre a comida, outro pode ter
preferência por um canto do sofá, canto que pode ter outro dono, dependendo do
horário. Em outras vezes, parece não haver acordo claro: ganha preferência quem
chega primeiro ou quem vence a briga.
Essa interação negociada é novidade na evolução
desses caçadores solitários, e costuma deixá-los estressados e doentes.
"Os donos acham que quanto mais gatos, melhor. Mas não", diz Daniela,
a veterinária da USP. "Um macho até é capaz de formar uma aliança com uma
parente próxima. Mas, quando um grande número de gatos vive junto, todos se
tornam mais agressivos." Ausência de líderes não significa ausência de
grupos: o dono pode achar que tem dez gatos, quando na verdade possui quatro de
uma facção e seis de outra.
Apesar
das descobertas recentes, o que não falta é coisa para aprender. Ainda não se
sabe por que são loucos por catnip, aquela ervinha aromática e medicinal que os
faz entrar em transe. Nem porque a fêmea move seus recém-nascidos um a um, com
todo o zelo, mesmo prestes a abandoná-los. O ronronar, vibração sonora
produzida na laringe, é outro mistério desses felinos. Também não há resposta
definitiva para a mania de querer abrir portas. Nem para o código presente na
maneira como movimentam suas caudas, sabe-se, no entanto, que mantê-las
erguidas costuma ser um sinal amistoso.
Será que no futuro nossa relação será mais próxima? "Até agora, eles
evoluíram apenas o suficiente para a amistosidade. São capazes de viver
conosco", diz Bradshaw. "Nas próximas décadas, provavelmente chegarão
à amizade." Importante: não é verdade uma notícia que correu o mundo ano
passado dizendo que gatos não gostam de contato físico. Daniela participou da
pesquisa comandada pelo veterinário inglês David Mills e esclarece: a maioria
dos gatos gosta de carinho do dono. Abrace o seu para comemorar. Mas com
cuidado.
Fonte: Mundo
Animal
Alexandre Rodrigues
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